Jair Candor, de 57 anos, nasceu e cresceu em meio à crença de que índios eram bichos e que era preciso matá-los para não atrapalharem o desenvolvimento do país. Mais de três décadas depois, esse funcionário da Funai (Fundação Nacional do Índio) se transformou em um incansável protetor dos direitos indígenas no Brasil.

Seu trabalho é tão relevante que ele foi indicado ao prêmio Golden Butterfly Activist Human Rights Award, em parceria com a Anistia Internacional, que homenageia defensores dos direitos humanos do mundo todo pela luta contra a injustiça e a opressão. Jair participou do festival Movies that Matter (Filmes que importam, em tradução livre), na cidade holandesa de Haia, depois de ter dito que só iria se fosse colocado em uma jaula, por ser “muito bicho do mato para andar de avião”.

Sua luta em prol dos indígenas foi retratada no documentário Piripkura (Zeza Filmes), dirigido por Mariana Oliva, Renata Terra e Bruno Jorge, que estreia nesta quinta-feira (01/03) em São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, Porto Alegre, Brasília e Salvador. O filme conta a história de Pakyî e Tamandua, dois dos últimos sobreviventes do povo Piripkura. Eles vivem isolados, por opção, no noroeste do Mato Grosso, entre os municípios de Rondolândia e Colniza, sob constante ameaça de fazendeiros e outros interessados na terra onde vivem.

Além de participar da mostra de ativistas do Movies that Matter, que irá acontecer entre os dias 23 e 31 de março, Piripkura foi o vencedor do prêmio de Direitos Humanos do Festival Internacional de Documentários de Amsterdã (IDFA) e de melhor documentário do Festival de Cinema do Rio.

Atuando como coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental Madeirinha-Juruena, Jair é o responsável por registrar, todos os anos, se os dois índios continuam vivos e morando na região. É a única maneira de garantir que a área siga interditada para que eles exerçam o direito de continuar vivendo lá.

Em meio à repercussão do filme e a vontade de voltar logo para o mato, Jair conversou com o Believe.Earth sobre quanto os índios têm a nos ensinar e o impacto positivo que o documentário deve trazer.

Believe.Earth (BE) – O documentário foi lançado só agora, mas já ganhou vários prêmios. Como você vê essa repercussão?
Jair Candor (JC) – Sabe, quando eu fui para o Rio no festival, eu nem estava esperando ganhar nada. Mas quando anunciaram o prêmio, foi bacana demais. É um grande filme. Então, espero que ele mude a opinião de algumas pessoas, porque é preciso entender que os caras [índios] merecem respeito. A história deles tem que ser contada. Pouca gente está interessada nos problemas da nossa região, da floresta. E a gente enfrenta problema de todos os lados… dos madeireiros, dos latifundiários, do agronegócio. Mas eu acho que fora do Brasil o filme vai fazer mais sucesso que aqui. 

BE – Você acha que o filme pode ajudar na demarcação da terra dos Piripkuras, que até hoje é só interditada?
JC – Eu torço para isso todos os dias da minha vida. Até porque a terra indígena preservou o que a ação de madeireiros e outros já teria desmatado. Acho que muita gente ia mudar de ideia se conhecesse a história desses dois. Ia dar mais atenção para a floresta, pressionar o governo. Precisamos muito disso porque eles vivem sob um risco constante de serem mortos.

BE – Você teme pela vida deles?
JC – Muito! Já ouvi fazendeiro dizer que vai acabar com os dois se encontrá-los. Eu sempre tento orientá-los para tomar outro rumo, mas a ameaça é constante. Madeireiro, garimpeiro… está todo mundo de olho nas terras indígenas. Às vezes, fico bem revoltado com isso, mas temos que continuar. É um alívio cada vez que os encontro vivos. Fico muito emocionado. É até difícil de explicar o que sinto. Quando vejo que eles estão bem, estão tranquilos… para mim, isso é tudo.

BE – Por que tanta admiração?
JC –
Porque são pessoas que estão lutando para viver sem fazer mal a ninguém, sem dever nada para ninguém e sem depender de ninguém. Isso é um aprendizado muito grande, uma coisa que você leva para a vida. É uma grande lição. Admiro essa independência deles para sobreviver. Os caras têm só um facão, um machado e uma tocha. Não precisam de mais nada, nem de pasto cheio de boi, nem de campo cheio de soja, nada. Só precisam da floresta de pé. Com isso e com a sabedoria deles, vivem bem e felizes. Queria eu ter uma inteligência dessa.

Dois homens baixinhos, pardos, sem camisa (a imagem mostra da cintura para cima), estão olhando para o canto esquerdo da imagem. O primeiro, à frente, tem cabelos lisos e pretos na altura do ombro e um pouco de barba/bigode. O outro, muito parecido com o primeiro mas aparenta ter mais idade, tem cabelos pretos e curtos, com menos barba no rosto.

Pakyî e Tamandua em cena do documentário Piripkura, que mostra a vida dos últimos sobreviventes da tribo (Divulgação/Zeza Filmes/Maria Farinha Filmes)

BE – Demorou muito para você passar a defender os indígenas, já que foi criado em meio a uma crença bem diferente?
JC – É, demorou. Porque eu cresci com todo mundo me falando que índio era animal e que não só podia matá-los, mas que quanto mais eles fossem eliminados seria melhor, porque eles atrapalhavam o desenvolvimento do país. Vi seringueiro organizando expedição para matar índio. Era pesado.

Mas eu comecei a mudar meu conceito sobre eles quando trabalhava cuidando de uma fazenda em Ji-Paraná (Rondônia) e iniciei um contato com os índios da tribo Gaviões. De um lado do rio, era eu, e de outro, eles. Um dia, eles foram até a casa onde eu ficava. Sempre arrumava alguma coisa para eles, como café, açúcar. Ou ajudava com o motor que usavam para tirar a borracha. Acabei ficando amigo deles. Depois de um tempo, eles me indicaram para a Funai. Naquela época, já tinha percebido que meu aprendizado na infância estava errado e consegui mudar meu conceito sobre os índios. Ainda bem.

BE – Como foi a primeira vez que você encontrou os Piripkuras?
JC –
Eles foram localizados nos anos 80. Em 1989, outra tribo cobrou a Funai para que não os abandonasse. Recebi uma ligação para que eu tentasse encontrá-los e fui. Começamos as expedições em maio e conseguimos achá-los só em agosto. Eu pensava que eles não estavam mais ali, porque toda a área tinha sido tomada por trator e motosserra. Mas eles estavam e eu não acreditei. Eles são ninjas!

No meio da floresta, dois homens baixinhos e morenos estão ao fundo. Um pouco à frente, um homem branco, alto e grisalho, usando óculos olha para um outro grupo de 3 homens morenos.

Cena do documentário Piripkura mostra o momento em que Jair encontra os dois indígenas, que queriam reacender o fogo da tocha que sempre carregam (Divulgação/Zeza Filmes/Maria Farinha Filmes)

BE – Eles também sentem admiração por você, não?
JC – [Risos tímidos] Olha, eu acho que eles gostam de me ver e têm um respeito por mim. Eu não sei se é destino, mas sou sempre eu que estou ali para ajudar quando precisam de algo. A gente desenvolveu essa amizade por isso também.

BE – Do que eles já precisaram?
JC – Uma vez, o mais velho [Pakyî] estava doente e insisti para ele vir comigo. Deu um trabalhão para convencê-lo. Conseguimos levá-lo ao hospital e ele acabou ficando muito tempo internado, uns 4 meses, porque, depois que foi operado da vesícula [o problema inicial], pegou malária e catapora. Quando fui visitá-lo, ele me olhou e parecia estar vendo o salvador da pátria. Ele se agarrou em mim, apontando para a floresta e pedindo para ir embora de volta para o mato. Foi um desespero. Mas consegui explicar que era necessário ficar mais para sarar. Depois, levei-o para a base e cuidei dele por várias semanas. Até acordava de madrugada para dar remédio. Conforme ia melhorando, a gente caçava e pescava. Quando ficou bom, não quis ficar. A vida deles é essa. E quem somos nós para dizer que está certo ou errado? É o direito deles e ponto. Eu gosto de ver que estão lá curtindo a vidinha deles, saudáveis e animados. Os dois são muito divertidos. Estão sempre bem alegres, dançando até. É uma lição de vida.

À frente de uma casa de madeira, em chão batido, dois homens nus, baixinhos e pardos, estão sentados (no canto esquerdo da imagem). Um pouco distante deles, outro homem branco, alto, cabelo e barba grisalhos, usando óculos e uma camiseta e bermuda cores verde escuro/cinza, está também sentado e olhando para frente.

Jair com Pakyî (esquerda) e Tamandua em cena do documentário: admiração e respeito mútuos (Divulgação/Zeza Filmes/Maria Farinha Filmes)

BE – Você passa períodos longos na floresta, longe da sua família?
JC – Sim, estou acostumado. Já faço isso há muito tempo. Desde o começo, quem aguentou o perrengue muito maior não fui eu, foi minha mulher, que ficou na cidade cuidando dos meninos. Mas hoje eles cresceram [um tem 21 anos e outro, 13] e daí já está mais tranquilo para ela.

BE – Por que Pakyî e Tamandua carregam sempre uma tocha acesa?
JC – Em 29 anos de trabalho com eles, desde que o Tamandua era um curumim, vi essa tocha apagar umas poucas vezes. O fogo é muito importante para eles. Tanto que as poucas ocasiões em que eles vieram nos procurar foi porque queriam fogo. Eles carregam essa tocha, sem apagar, para tudo que é lugar. Eu brinco que é a tocha olímpica deles.

 

Este conteúdo é divulgado com o apoio institucional do Instituto Socioambiental (ISA) e Greenpeace