Foram meses acampados nas ruas por onde deveriam passar os caminhões carregando o lixo da capital do Estado de Kerala, no sul da Índia, para a vila rural de Villapilsala. Contra as determinações da polícia, dos políticos e decisões judiciais, homens, mulheres e crianças resistiram de todas as formas que puderam. Em jogo, estava a sanidade dos milhares de moradores do povoado. Durante doze anos, eles viram toneladas de resíduos sendo acumuladas em um lixão ao lado de suas casas. Até o dia em que o conselho municipal da capital, Thiruvananthapuram, cedeu à força dos protestos e interrompeu os despejos. Era 2012 quando isso aconteceu.

O sucesso do movimento popular em Villapilsala gerou uma onda verde em outras vilas que também sofriam com o impacto de lixões e obrigou o poder local a buscar soluções inovadoras para o próprio lixo. Hoje, mais de 30% dos habitantes da capital de Kerala são responsáveis pelo reaproveitamento de material orgânico e pela separação dos recicláveis. Mas a ideia é trazer mais gente. Para tentar convencer toda a cidade a fazer o mesmo, os governos do estado e da cidade têm investido em campanhas de conscientização que apostam na educação das crianças e na parceria com Organizações Não Governamentais (ONG) e entidades privadas.

Triruvananthapuram é a única cidade indiana com um milhão de habitantes ou mais que deixou de ter um sistema centralizado de coleta de resíduos, lixão ou aterro. Isso significa que não existe por ali recolhimento diário ou semanal de lixo, mas campanhas de arrecadação de materiais recicláveis que acontecem mensalmente. Plástico, papéis e metais podem ser vendidos, doados ou entregues limpos ao governo ou a ONGs e entidades privadas.

“Somos um Estado muito populoso e povoado. Com o fechamento das plantas de processamento centralizadas de lixo, já não existem opções de locais para despejá-lo. Não havia escolha”, conta Kuppu Vasuki, responsável pela missão Suchitwa, criada pelo governo estadual para ajudar nas políticas de saneamento e manejo de lixo.

Uma mulher de meia idade, cabelos escuros que vão até abaixo das orelhas e um pequeno ponto castanho entre as sobrancelhas, usa brincos prateados em formato de sino e veste uma camisa verde abacate. A camisa tem mangas longas arregaçadas quase até os cotovelos e um decote em diagonal descendente para a sua direita. A mulher está sentada em uma cadeira de couro preto e apoia os braços sobre uma mesa com superfície de vidro, entrelaçando os dedos. Ela sorri na direção do outro lado da mesa, diagonal em relação à câmera, que a fotografa pelo lado esquerdo. Sobre a mesa, há uma carteira de couro marrom claro, sobre a qual estão os fios brancos de um fone de ouvido intra auricular, conectados a um celular branco. Ao fundo, paredes de palha com juntas de madeira, iluminadas e desfocadas.

Kuppu Vasuki, responsável pela missão Suchitwa, criada pelo governo estadual para auxiliar e implementar políticas de saneamento e manejo de lixo (Carolina Oms / Believe.Earth)

O governo de Kerala está realizando uma pesquisa para investigar como cada morador maneja seus resíduos. Enquanto aguarda esses dados, Vasuki estima que cerca de 70% das casas em áreas rurais e 50% dos lares urbanos fazem compostagem.  No setor privado, a cidade só autoriza o funcionamento de empresas que dão destinação certa para o lixo orgânico e ainda cobra uma taxa pelo recolhimento dos recicláveis já separados e limpos.

A experiência em Triruvananthapuram inspirou o governo estadual a incentivar que todas as vilas e cidades adotem a descentralização e reciclagem do lixo. A campanha “Kerala Verde” é ainda mais abrangente e quer integrar políticas de manejo sustentável de água, resíduos e agricultura orgânica.

Uma das iniciativas, já em fase de implementação na capital, é a utilização do adubo gerado pelas composteiras na agricultura local e orgânica. Se a campanha for bem-sucedida, o lixo de 34 milhões de habitantes de Kerala, quase a população do Canadá, não apodrecerá em lixões nem será queimado a céu aberto. “É um grande feito para um estado. Não vejo esse tipo de tratamento [descentralização e compostagem] em nenhum lugar do mundo”, diz Vasuki.

UM PASSADO ENTERRADO
Quando os habitantes de Villapilsala começaram a pedir a interrupção do funcionamento da fábrica de processamento de resíduos instalada ao lado de suas casas, nem podiam imaginar a diferença que a atitude deles faria na vida de tanta gente anos depois. O lixo começou a chegar ali em 2000, quando a cidade terceirizou seu recolhimento e processamento. A empresa responsável pelo contrato prometeu separar e reciclar os sólidos e transformar o material orgânico em adubo. Mas levou poucos anos para que percebessem que não era viável processar tudo – e a maior parte dele começou a se acumular no terreno ao lado.

O agricultor Stevenson Pill, hoje com 80 anos, morava a menos de um quilômetro do que rapidamente se tornou um lixão. “O cheiro era tão ruim e havia tantas moscas que não conseguíamos comer em nossas casas. Muitos dos meus vizinhos e familiares tiveram doenças de pele, infecções”, conta. O lixo contaminou também o lençol freático próximo ao terreno e o problema começou a afetar todos os moradores da vila, que atualmente conta com 18 mil habitantes.

A fotografia mostra o busto de um senhor de cabelos curtos e lisos grisalhos, pele bronze, próximo de seus 80 anos, que olha diretamente para a câmera com expressão séria e lábios levemente contraídos. Ele usa um bigode também grisalho e veste uma camisa coral bem clara. Ao fundo, o encontro entre duas paredes brancas: a da esquerda, com uma porta aberta que alcança lateralmente a margem da foto, e a da direita, com duas portas abertas, também alcançando lateralmente a margem da foto. Acima da porta que está entre as duas demais, há um quadro em tom areia com molduras em marrom escuro. Tanto as paredes e suas portas quanto o quadro estão desfocados. O ambiente está iluminado e a luz atinge a face esquerda do senhor.

O agricultor Stevenson Pill, hoje com 80 anos, morava a menos de um quilômetro da fábrica de tratamento de lixo em Villapilsala (Carolina Oms/Believe.Earth)

Em 2008, alegando não-cumprimento de diversas cláusulas, a cidade de Thiruvananthapuram rescindiu o contrato com a empresa privada responsável pela fábrica e assumiu o controle das operações. Mas as condições seguiram piorando e cada vez mais lixo se acumulava – diariamente, os caminhões despejavam entre 200 e 300 toneladas na vila.

A terra já não dava frutos. Os animais adoeceram. Os agricultores se viram obrigados a vender suas terras e tentar a sorte em outros lugares. Crianças e idosos desenvolveram problemas respiratórios por causa da poluição do ar.

Cansados das promessas de melhorias e de soluções paliativas, como a construção de um fosso para tentar impedir a contaminação da água, os moradores pediram ao conselho municipal da capital que desativasse a fábrica. Em dezembro de 2011, depois de esperar e de negociar em vão, eles começaram a bloquear a passagem dos caminhões com o lixo. “Homens, mulheres e crianças dormiam e acordavam nas estradas. Nós chegamos a montar o berço de um bebê de seis meses lá mesmo. Os comerciantes contribuíam fornecendo água e comida para os manifestantes. Todos participaram”, diz Shob Hana, uma das líderes do protesto.

A resiliência dos moradores da vila, que não cediam nem mesmo diante de prisões, ameaças e bombas de gás lacrimogêneo, chamou a atenção da imprensa nacional. A intensa cobertura midiática colocou ainda mais pressão sobre a prefeitura, que, sem alternativas, em agosto de 2012, anunciou o fechamento da fábrica. “Graças aos protestos, os governos entenderam as consequências do despejo de lixo e estão incentivando uma mudança no manejo de resíduos em todo o estado”, afirma Vijay Raj, atual presidente do Panchayat, um grupo de vilas autoadministradas, e um dos organizadores dos protestos contra a fábrica.

O COMEÇO DO FUTURO
Nos primeiros anos da busca de soluções para o manejo de resíduos, os moradores da capital de Kerala receberam canos de PVC que deveriam ser enterrados nos jardins das casas para receber o lixo para compostagem. O governo criou estações comunitárias para receber o material orgânico. Mas a experiência não deu certo.

Sem supervisão adequada, a população começou a despejar todo tipo de material nos centros comunitários. Nas casas, muitos reclamavam que os canos exalavam um cheiro desagradável, o que pode ocorrer quando o processo de compostagem não é feito de um jeito adequado. Nas ruas, o lixo começou a se acumular e muitos queimavam todo tipo de material em fogueiras no meio da cidade.

Em novembro de 2014, foi lançada a campanha “Ente Nagaram, Sundara Nagaram”, que significa “Minha cidade, linda cidade”. A população recebeu composteiras individuais que poderiam ser usadas dentro das cozinhas. ONGs e empresas parceiras passaram a ensinar os moradores a compostar. Os funcionários dos centros comunitários foram treinados para receber o lixo orgânico e evitar a contaminação com resíduos sanitários ou sólidos.

Uma área verde mostra o rastro de um trator entre duas árvores baixas, o automóvel aparece ao fundo com a parte escavadeira estendida à sua frente. À esquerda desse trator, há mais um, cuja maior parte está omitida pela imagem de uma das árvores mencionadas. À direita das árvores e do rastro, a área verde tem um largo rebaixamento, onde há mais algumas árvores e alguns arbustos de tipos diversos. Ao fundo, um paredão de terra e pedra, no alto do qual aparece um recorte de floresta que se corta com a margem superior da foto.

Desativada há cinco anos, a fábrica de tratamento de lixo hoje possui apenas máquinas abandonadas e verde (Carolina Oms / Believe.Earth)

De acordo com Anoop Roy, responsável pela campanha de descentralização, uma das vantagens da prática é que ela “não exige bilhões nem precisa de uma tecnologia complicada. O modelo é simples, econômico e sustentável, por isso, qualquer pessoa pode operar”, diz. Ele afirma que a cidade já investiu entre 5 e 7,5 milhões de rúpias (entre 78,1 e 117 mil de dólares) nas campanhas de conscientização sobre reciclagem e compostagem. Quando a fábrica em Villapilsala estava em funcionamento, cerca de um milhão de rúpias (15,6 mil dólares) eram gastos mensalmente somente em diesel usados no recolhimento e transporte de resíduos.

A empresa Haritha Gramam é responsável pela retirada dos plásticos nas casas de Thiruvananthapuram e entrega mensal de serragem com microorganismos que aceleram a compostagem e evitam o mau cheiro. “Nos próximos meses, devemos expandir nossos serviços para 10 mil casas e apartamentos”, diz Dinesh Kumar, presidente da companhia. O serviço custa 200 rúpias ao mês (cerca de três dólares).

“É importante ter uma cidade do tamanho de Thiruvananthapuram limpa. Isso vai mudar definitivamente a maneira como as pessoas encaram a compostagem e o recolhimento descentralizado de lixo”, afirma o ministro das Finanças de Kerala, Thomas Isaac. Ele avalia que os centros foram importantes para desmistificar nos indianos a ideia de que compostar atrairia bichos e doenças. “Todos perceberam que não havia risco. Acho que essa foi a experiência mais educativa”, diz.

Três senhoras indianas estão sentadas em roda numa pequena rampa de cimento à porta de uma grande parede gradeada. A parede tem juntas de cor verde água e a porta diante da rampa tem juntas de cor azul turquesa. Uma das senhoras tem cabelos curtos grisalhos e veste um sári cor de champagne, as outras duas têm cabelos longos escuros, que estão presos, uma delas veste um sári lilás bem claro com estampas em cor-de-rosa e amarelo claro, a outra veste uma combinação de tecidos em cinza claro e preto, e uma calça preta. Todas elas olham umas para as outras. Na parede gradeada, à direita da porta, há uma grande placa de fundo amarelo com dizeres no idioma local, uma pequena placa vermelha com menos dizeres, à direita da anterior. Há também um pedaço de madeira pintado de branco com alguns papéis afixados, com anúncios e textos variados no idioma local. Através da parede aparecem estruturas de separação de lixo e compostagem, feitas de tábuas de madeira pintadas de cor-de-rosa e de branco.

Centros comunitários de compostagem agora contam com responsável para auxiliar população a separar o lixo (Carolina Oms / Believe.Earth)

O PODER DO ENSINO
A educação tem sido uma estratégia central. Nas escolas, a ONG Thanal tem atuado junto com professores e voluntários para conscientizar as famílias por meio das crianças. Nas escolas estaduais, os alunos fazem parte do “exército verde”, em que aprendem a importância da compostagem e da redução do uso de plástico e materiais descartáveis.

Além de compartilhar os aprendizados com suas famílias, os alunos e voluntários também tentam impactar as comunidades ao redor das escolas por meio de marchas e cartazes recicláveis e reaproveitados. “Não basta gerar lixo e depois pensar em reciclar. É preciso reduzir a produção de resíduos”, conta Nair, da Thanal, que coordenou a última marcha.

Educar não é um processo rápido. Enquanto as ações acontecem, muitos moradores ainda queimam ou jogam lixo nos rios da cidade. Thomas Isaac acredita que Kerala vai mudar a maneira como cada um se relaciona com o lixo que produz. “Meu lixo, minha responsabilidade”, afirma o ministro, lembrando o slogan da nova campanha lançada pelo governo estadual.

POR DENTRO DO PANCHAYAT

Os Panchayats são um conjunto de vilas rurais autogovernadas por um sistema político que busca aumentar a participação de seus moradores na política por meio da descentralização do poder. As áreas da vila são divididas de acordo com o território e o tamanho da população e cada uma delas elege um representante. Em conjunto, elas nomeiam ainda um homem ou uma mulher para presidir o Panchayat. O mandato dos membros dura cinco anos e existem cotas para mulheres e castas historicamente excluídas no país. Atualmente o país tem 250 mil Panchayats.

Esse sistema político é o mais antigo em vigor na Índia, mas foi revigorado nos anos noventa para tentar contornar a incapacidade do governo federal de trazer soluções para os problemas locais. Na época, Kerala foi além e modificou a legislação estadual para reduzir a capacidade dos governos de interferir na política local e aumentar a fatia de impostos que seria arrecadada e utilizada diretamente pelas vilas.

Em Villapilsala, dá para ver a proximidade dos representantes com a população. Não há portas fechadas, seguranças ou burocracia. Qualquer cidadão pode entrar e conversar com seu representante. Os celulares de todos eles estão disponíveis em um site do governo estadual.