A história da chef de confeitaria Desirèe Mendes, 40 anos, começa no ano 2000, quando, viciada em crack, foi presa por tentativa de roubo de um ônibus na zona norte de São Paulo. No Centro de Detenção Provisória (CDP) do bairro de Pinheiros, deu à luz cumprindo pena. O parto, realizado no Hospital Regional de Osasco, na Grande São Paulo, ocorreu com ela algemada pelos pés e pelas mãos.

Dois dias após o nascimento, Desirèe voltou com o filho recém-nascido para o CDP. A convivência durou três meses. Depois disso, o bebê foi obrigado a deixar a prisão, tendo a guarda confiada à avó materna. “Foi o dia mais triste da minha vida”, conta. Como forma de autodefesa, Desirèe passou a viver como se fosse sozinha no mundo, sem pensar que, do lado de fora da prisão, um filho a esperava. “Até hoje não consegui restabelecer minha relação com ele”, afirma.

Tendo cumprido os cinco anos de pena, ela saiu da prisão sem perspectiva. Não demorou para que voltasse à vida do crack. Em 2012, vivendo na chamada Cracolândia, região do centro de São Paulo conhecida pelo enorme número de usuários desse tipo de droga, foi presa novamente. No mesmo ano, teve seu segundo filho, Enzo, enquanto cumpria pena. O parto ocorreu na Santa Casa de São Paulo, desta vez sem algemas, mas acompanhado por policiais militares e agentes penitenciários. Nada de parentes emocionados ou choro de alegria. “Foi uma situação tão triste quanto a primeira”, descreve ela. Como da primeira vez, três dias após o parto, Desirèe voltou para detrás das grades.

Mas a história, aqui, ganhou um final diferente. Dois meses depois do nascimento do bebê, ela pôde deixar a prisão graças a um habeas corpus que permite que, enquanto não vem uma decisão definitiva da Justiça, cumpre-se a pena em regime domiciliar. “Sair com meu filho me deu um novo sentido à vida”, afirma ela. “Pude ser mãe de verdade pela primeira vez.”

Desirèe agarrou a oportunidade que teve. Livrou-se do vício, começou a fazer cursos de doceria e conseguiu um emprego numa confeitaria, ofício que exerce até hoje. Este ano, ela deverá concluir o Ensino Médio e iniciar uma faculdade de gastronomia. Como um acerto de contas com o passado, ministra cursos de arte-terapia na mesma cracolândia em que viveu seus piores pesadelos. Uma vida agitada que tem como principal inspiração o pequeno Enzo, hoje com 5 anos. “Ele é minha razão de ser”, diz. “É por ele que levanto todos os dias.”

Desirèe conta que se emocionou quando soube da decisão tomada em fevereiro pelo Supremo Tribunal Federal que permite que outras mães e gestantes não condenadas em caráter definitivo aguardem o julgamento em prisão domiciliar. “Há muitas Desirèes à espera de uma chance de mudar de vida”, afirma. A decisão, um habeas corpus na modalidade coletiva – não prevista na Constituição, mas aceita pela primeira vez pela Suprema Corte –, permitirá que cerca de 15 mil mulheres deixem a prisão, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen).

PREVISTO NA LEGISLAÇÃO
A rigor, casos como o de Desirèe poderiam estar sendo evitados há pelo menos dois anos sem a necessidade do habeas corpus concedido recentemente pelo Supremo. Afinal, desde 2016 o Código de Processo Penal incorpora, em seu artigo 318, a possibilidade de juízes substituírem a prisão preventiva pela domiciliar no caso de o réu ser gestante, mulher com filho de até 12 anos e até homem, caso seja o único responsável pelo cuidado do filho. A mudança foi incorporada pelo chamado Marco Legal da Primeira Infância, que alterou outros dispositivos legais. Além disso, o artigo 227 da Constituição prevê que a criança é prioridade absoluta e que Estado, sociedade e família devem compartilhar a responsabilidade pelo cuidado dos pequenos.

“O habeas corpus tem uma potência muito grande no sentido de fazer valer a legislação que já existe”, afirma a professora de Direito do Mackenzie Bruna Angotti, autora do estudo Dar à luz à sombra, em parceria com Ana Gabriela Mendes Braga e publicado pelo IPEA. Ela observa que a própria Constituição prevê, em seu artigo 5º, que nenhuma pena passará da pessoa do condenado, o que na prática ocorre toda vez que recém-nascidos acabam ficando na prisão com as mães.

Um efeito nefasto da vida na prisão com os filhos é o que Bruna chama de hipermaternidade versus hipomaternidade: num primeiro momento, quando estão com as crianças, as mães são absorvidas pelo cuidado com os bebês, ficando impossibilitadas de exercer qualquer atividade dentro do presídio, como trabalhos contabilizados como remissão (redução) das penas e atividades escolares oferecidas pelo sistema prisional. Num segundo momento, quando mãe e filho são separados, há um rompimento abrupto. “É uma mudança que ocorre sem acompanhamento psicológico e representa um enorme fator de vulnerabilização”, afirma a professora.

“Os sinais da maternidade, como a produção de leite materno, permanecem no corpo mesmo com o filho longe. Tudo isso faz com que a mulher continue vivendo a maternidade.”

O fato de passar os primeiros meses de vida numa prisão priva a criança de direitos básicos (e assegurados em lei), como o de brincar e o direito à convivência familiar. Isso pode ter impactos na vida adulta. Uma obra sobre o tema, O Primeiro Ano de Vida, do psicanalista René Spitz, registra que, quando as crianças são criadas na ausência das mães e sem o estabelecimento de vínculos afetivos, há o risco de distúrbios como atraso no desenvolvimento corporal, da linguagem e menor resistência a doenças.

Sobre os impactos da privação das atividades lúdicas, os efeitos têm a ver com o atraso na leitura e na identificação de números e cores, conforme levantamento feito pela casa de acolhimento Nova Semente, que atua em uma penitenciária de Salvador (BA). O período de 1 a 4 anos de idade é crítico para o desenvolvimento da linguagem e das vias sensoriais (visão e audição), como mostra o documento Primeira infância é prioridade absoluta, do Instituto Alana, desenvolvido como parte do projeto Prioridade Absoluta, com ações institucionais e de mobilização.

APOIO PÓS-PRISÃO
Embora a Lei de Execuções Penais (LEP) preveja a existência de berçários e creches nos presídios femininos, a adoção desse tipo de instalação ainda é mínima. Uma pesquisa do Depen realizada em 41 unidades carcerárias de dez Estados mostrou que apenas 7,3% possuem creches e 31% têm berçários.

Mas os especialistas ouvidos para esta reportagem apontam que, mesmo que a LEP fosse cumprida na íntegra, não há justificativas para manter uma criança na prisão. “O cárcere já é uma experiência traumática para qualquer adulto. Imagine para uma criança”, afirma a coordenadora nacional da Pastoral Carcerária, Irmã Petra Pfaller. “Conheço crianças de mais de um ano que nunca viram o céu à noite.”

É provável que, a partir de agora, com a força da decisão do Supremo, a legislação já existente seja cumprida e as mães e gestantes em prisão preventiva possam ficar em prisão domiciliar. Mas essas mulheres beneficiadas pelo habeas corpus precisam de apoio fora do cárcere.

“Numa situação de desemprego e tendo de se dedicar integralmente aos filhos pequenos, tarefa que, por si, exige uma enorme disposição, essas mães estarão numa situação de grande vulnerabilidade”, observa a professora de psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Isabel da Silva Kahn Marin, autora do trabalho Tornar-se mãe num presídio: a criação de um espaço potencial.  

A advogada do Coletivo de Advogados de Direitos Humanos (CADHu), que deu entrada no pedido de habeas corpus junto ao supremo, Eloísa Machado, acrescenta que, com a decisão, as mães e gestantes presas em caráter preventivo, muitas sem condições de contratar bons advogados, não precisarão acionar os tribunais individualmente para garantir seu direito.

“Estamos falando do país que queremos para daqui 20, 30 anos e cujos adultos serão as crianças que podem estar hoje encarceradas juntamente com suas mães”, afirma a advogada.