Até o meio da década de 1980, Josenilda Pedro da Silva, a Nalvinha da Ilha, e os vizinhos viviam em um território de exclusão. Moradores da Ilha de Deus, em Recife (PE), àquele tempo chamada de Ilha sem Deus, eles não tinham água, nem energia, nem atenção do poder público. Faltava tudo, inclusive autoestima.

Cercados por três rios e ao lado do Parque dos Manguezais, a maior área de manguezal urbano do Brasil, os 1.500 habitantes na época dependiam da natureza para sobreviver. A maioria ganhava a vida catando marisco. Até o dia em que duas fábricas próximas provocaram um desastre ambiental com o despejo de resíduos da produção de sabão. As águas viraram espuma. As famílias começaram a passar fome e precisaram sair pela primeira vez dali em busca de sustento. “A violência chegou e a gente perdeu muitos jovens. A ilha era um esconderijo fácil para bandidos”, diz Nalvinha, aos 44 anos, que era pequena quando tudo aconteceu e conta essa história pelas memórias da mãe, Berenice da Silva, a Dona Beró.

Com a tragédia, o lugar foi parar nas páginas dos jornais e saiu da invisibilidade, chamando a atenção de um padre e uma freira, que se mudaram para o local e fundaram a ONG Saber Viver, em 1983. A ideia dos missionários era profissionalizar os habitantes. “Eles diziam que não dariam o peixe, mas ensinariam a pescar”, afirma Nalvinha. “Queriam abrir a nossa mente, para que a gente aprendesse a lutar.” As iniciativas eram voltadas especialmente para as mulheres, que tiveram aulas de corte e costura, reforço escolar e artesanato.

A foto mostra uma mulher negra, com os cabelos crespos enfeitados com uma faixa com flores lilás e vermelha, que sorri. Ela usa brincos coloridos e veste uma camiseta branca onde está escrito "Semear e Colher". Ela está sentada e sorrindo, com os pés afundados na lama do mangue. Atrás, vemos o rio escuro e algumas pessoas fora do foco.

Nalvinha da Ilha, nascida e criada na Ilha de Deus, comanda a ONG Saber Viver (Rafael Martins/Believe.Earth)

Foram elas, as mulheres, que saíram às ruas e seguiram até a sede do governo, no centro da cidade, para protestar e pedir melhorias. “Elas tiveram que fazer história e colocar a Ilha na boca do povo antes de as mudanças acontecerem”, dz Nalvinha, que hoje é presidente voluntária da ONG. “A primeira conquista foi a água potável.”

Ainda na década de 1980, vieram as primeiras 60 casas de alvenaria, erguidas com a ajuda de instituições alemãs que até hoje apoiam os projetos da ilha. O empreendedorismo virou uma marca local. Muitos assistidos por projetos sociais se transformaram em padeiros, vendedores ou produtores de artesanato a partir dos cursos oferecidos. Mas a ilha não esqueceu suas origens: é o símbolo da defesa do manguezal de Recife, com trabalhos coordenados por Nalvinha.

SEMENTES DO AMANHÃ
Recife é filha do mangue. A cidade foi erguida acima de uma planície costeira na qual o solo predominante era o manguezal. Hoje, apenas 2,4% da superfície da cidade mantém essa cobertura. A capital pernambucana abriga 1,5 milhão de pessoas, mas são os 2 mil moradores da Ilha de Deus que estabeleceram a relação mais íntima com esse ecossistema. “Meus pais e avós são pescadores”, conta Maria Eduarda Santos, 18 anos, voluntária da Saber Viver. “A gente aprende a recuperar o mangue porque é nosso meio de vida.”

Há dois anos, a ONG começou o projeto Semear e Colher. Com um aporte inicial da instituição alemã Aktionskreis, a organização estruturou aulas de educação ambiental para crianças e jovens e um projeto de replantio de mudas de mangue no entorno da ilha. Os moradores metem os pés na lama e catam as garrafas PET jogadas ali. Depois, limpam o plástico, fazem nele o plantio das sementes e procuram áreas degradadas para replantar. A iniciativa já devolveu ao ambiente 24 mil mudas. Fábio Lima, 32 anos, é o responsável técnico da ação. Pescador, ele adquiriu na prática o conhecimento de que precisa para reviver o manguezal.

“Um dia, vi dona Nalvinha chorando porque as mudas estavam morrendo”, diz Fábio. “Mais de 40% delas não sobreviviam. Investigamos as causas e reduzimos essa mortalidade.” É que a semente precisa se fincar na lama, explica Nalvinha. “Como tem muito lixo embaixo, ela topa com sacolas e garrafas e não fica no solo. Nosso trabalho é colocar cada uma com as próprias mãos.”

Dos três rios que cercam a comunidade, dois estão praticamente mortos. Com o replantio, eles pretendem salvar pelo menos um dos cursos d’água e garantir a subsistência, já que 90% da população local vive da pesca ou das atividades subsequentes a ela, como a limpeza do sururu. Uma das maiores alegrias da presidente da ONG é reencontrar espécies que haviam desaparecido da região, como o caranguejo Uca, também conhecido como tesoura. Sinal de que a natureza está respondendo.

Para garantir também a segurança alimentar dos moradores, a Saber Viver conduz um projeto de hortas, usando garrafas PET recolhidas que viram pequenos vasos para plantio em todas as casas. Vinte residências já foram contempladas. Uma delas é a da doméstica Maria José da Silva, 65 anos, que ganhou um paredão verde de alface, coentro e cebolinha no corredor estreito do quintal. “Dá vontade de cuidar e ver tudo crescer”, diz. A iniciativa da ONG inclui a realização de oficinas que ensinam os moradores a manter os cultivos.

BONITO DE VER
Em 2012, a Ilha de Deus entrou para o circuito turístico de Recife. A comunidade se preparou com o apoio de um professor universitário e montou um roteiro que leva os visitantes a observar a catação de mariscos e até a vivenciar a experiência de botar a mão no mangue e retirar os crustáceos. Já os passeios de catamarã permitem visitar o Rio Capibaribe e as ilhas do centro, com trajeto que margeia a Bacia do Pina e termina com a famosa mariscada servida na Saber Viver.

“O mais importante não é nem o dinheiro que fica na comunidade”, diz o morador Fábio Brito, um dos guias locais. “Como somos hospitaleiros, muita gente acaba voltando não só para visitar, mas também para nos ajudar.” Para 2020, está prevista a finalização da obra de um museu que vai mostrar a história de superação da comunidade. Uma história de lutas e conquistas que merece ser lembrada.

No canto esquerdo da foto, vemos apenas uma mão com os dedos cheios de lama segurando um caranguejo.

Caranguejo Uca é uma das espécies que voltaram a ser vistas no manguezal próximo à ilha (Rafael Martins/Believe.Earth)