Quem vê aquele sobrado amarelo, no Jardim Ângela, zona sul de São Paulo, não imagina que ali funciona um espaço aberto ao público: com sala para coworking, auditório, estúdio para produção audiovisual, ilhas de edição e redação de jornalismo. Esse é o Centro de Mídia M´Boi Mirim, um equipamento comunitário de comunicação que também funciona como sede do coletivo de comunicação Desenrola E Não Me Enrola, uma equipe de quatro pessoas, entre jornalistas e estudantes de jornalismo, que produz conteúdo para o site do projeto, com temas que vão de cultura e empreendedorismo à participação do jovem na política.

Criado em abril de 2013, o Desenrola vem ajudando a estabelecer um novo entendimento do que é viver na periferia e mudando a forma como os moradores se relacionam com o poder público. Numa região em que a ausência do Estado faz com que inexistam itens básicos, como energia e saneamento, a informação é, ela também, um elemento escasso. E que faz falta. “O acesso à informação muda a forma como a pessoa enxerga a própria vida”, diz o jornalista Ronaldo Matos, 30 anos, morador do Jardim Ângela e co-fundador do projeto, junto com a jornalista Thais Siqueira, 33.

“Nossa proposta é ir além do portal de notícias, mas criar um lugar para que as pessoas possam conviver e realizar seus projetos”, explica Ronaldo. Seguindo uma lógica de economia do compartilhamento existente na periferia há muito tempo, esses espaços comunitários acabam servindo de centros de troca de experiências e, dessa forma, de produção de conhecimento.

O Centro de Mídia, onde funciona o Desenrola e Não me Enrola, abriga uma redação jornalística, ilhas de edição, auditório, sala de coworking e serve de base para outros projetos (Rodrigo Elizeu/Believe.Earth)

O Desenrola também tem um viés educacional. O Você Repórter da Periferia, por exemplo, forma jovens para atuar como repórteres e cobrir conteúdo de interesse da periferia. A iniciativa já está na quinta edição – 180 estudantes já passaram pelo projeto, alguns deles, inclusive, fazem parte da atual equipe de redação, como a fotógrafa e estudante de design, Flavia Lopes, e a estudante de jornalismo Evelyn Vilhena.

Magda Pereira de Souza, que também participou do Você Repórter em 2017, acredita que a iniciativa ampliou seus horizontes profissionais. “As aulas foram determinantes para minha escolha de trabalhar como fotógrafa”, conta. Hoje, ela mantém a página Empodere CINEgo, em que cobre atividades culturais em bairros periféricos na zona sul de São Paulo. “Sempre me interessei por arte na periferia. Mas o projeto me deu uma visão de como posso trabalhar o tema sob o ponto de vista da comunicação.”

A ação mais recente do coletivo de comunicação é a pesquisa Info Território, lançada no ano passado, para entender o comportamento dos jovens da periferia sobre temas como cultura, educação e política. “Há uma espécie de lacuna no trabalho dos grandes institutos em relação ao assunto”, afirma Ronaldo Matos.

O trabalho do Desenrola passa, ainda, pela organização de um congresso de escritores da periferia. Os congressos acontecem desde 2014 e reúnem, em média, 400 pessoas, desde escritores, artistas que participam de saraus e batalhas de rima e, mais recentemente, poetas que organizam os slams (batalhas de poesia falada) de São Paulo. Neste ano, o Desenrola irá realizar o último encontro, pois, nas palavras de Ronaldo, “hoje existem muito mais debates que pautam a produção literária na periferia e nós ajudamos a fomentar isso. Esses eventos ganharam mais força e vida própria, então entendemos que cumprimos nosso papel.”

Mas, de onde vem o dinheiro para bancar o projeto e todas essas iniciativas? “Em 2014, participamos do programa Vai [Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais da Prefeitura de São Paulo], que oferece apoio, na época de até 40 mil reais, para projetos artísticos e culturais da periferia”, diz Ronaldo. Em 2014 e 2015, esses recursos bancaram o funcionamento do projeto. “Em 2016, todas as atividades desenvolvidas pelo Desenrola foram custeadas com investimento dos integrantes do coletivo”, conta. “Parte desses valores era destinada à manutenção das iniciativas do coletivo, como produção de conteúdo para o site e a realização das formações teóricas e práticas do Você Repórter da Periferia.”

A participação no programa, que exige um elevado nível de formalização para projetos que, em geral, atuam na informalidade, foi um aprendizado difícil, mas importante na relação com o burocrático mundo das instituições governamentais.

O poder da informação Como surgiu o Desenrola E Não Me Enrola  Quadrinho 1 [Narração - Ronaldo] Tudo começou na banca do meu pai, no Jardim  ngela. Cresci lendo tudo o que ele vendia…  [Pai] Você gosta de ler, hein, filho? [Ronaldo] Cada dia mais, pai!  [Narração] Esse gosto pela leitura, que me acompanhou na escola, também me fez ver as coisas de um jeito mais crítico...  Quadrinho 2 [Ronaldo pensa] Nossa, tanta coisa legal na quebrada! Tem saraus, eventos, shows…   … Então é por isso que as políticas públicas e os editais culturais são tão importantes!  Quadrinho 3 [Narração] Quando chegou a hora de escolher a faculdade, juntei as duas coisas:   [Ronaldo pensa] Bom, eu adoro escrever e preciso contar pro mundo que, aqui na quebrada, rola um monte de coisas incríveis, que a violência não nos define… Vou pro jornalismo!  Quadrinho 4 [Narração] E foi na faculdade que, em parceria com a jornalista Thaís, surgiu o Desenrola e Não Me Enrola!  [Thaís fala] Hoje, nosso coletivo tem um site de notícias, uma redação e até um programa de formação de repórteres da periferia.  [Ronaldo fala] Isso ajuda a melhorar a vida na quebrada e a desmistificá-la para quem vê de fora. E muda o mundo.

Desde então, o relacionamento do Desenrola com o poder público tem ocorrido de várias formas. No ano passado, por exemplo, a equipe cobriu a ocupação da Secretaria de Cultura de São Paulo por agentes culturais que pediam a saída do então secretário. O site virou fonte de informação para grandes veículos na cobertura da crise.

De olho na sustentabilidade do projeto e atentos aos benefícios da tecnologia no aprimoramento da cidadania, Ronaldo e seus colegas embarcaram, este ano, na experiência do financiamento coletivo. Por meio de um site específico para projetos sociais, criaram uma campanha para arrecadar recursos para bancar os gastos de manutenção do Centro de Mídia, em 2019. O objetivo era levantar 20 mil reais, meta alcançada no início do mês.

Com tranquilidade de caixa para pensar no médio prazo, a equipe do Desenrola deverá intensificar, a partir de agora, um trabalho que considera fundamental, de resgate da memória da periferia. “Nossa sede fica em uma região urbanizada. E isso ocorre porque quem trouxe a infraestrutura foram as pessoas, não os políticos”, afirma Ronaldo. “Mas a falta de conhecimento sempre abre a perspectiva para que algum candidato se aproprie dessas conquistas.”

Outra preocupação é a relação dos jovens com o local onde vivem. “Muitos ainda veem a região sob a perspectiva dos moradores do centro”, diz Ronaldo. “Quando descobrem a riqueza de seu próprio território e se assumem como moradores dali, os espaços passam a ser de convivência, de produção cultural.” Assim, o “jornalismo da quebrada”, como Matos define, referindo-se à gíria paulistana que faz referência às ruas das comunidades, vai contribuindo para redefinir a identidade da periferia.

Este conteúdo foi baseado na pesquisa “Emergência Política Periferias”, realizada pelo Instituto Update . Baixe aqui a pesquisa completa.