Caçula em uma casa de sete filhos no pequeno vilarejo rural de Wagoma, no Quênia, Roseline Orwa viu, no final da década de 80, sua vila ser dizimada pela epidemia do século: o HIV/Aids. Ela conta ter presenciado toda uma geração perder suas vidas e guarda como recordação da adolescência quando viu dois primos serem enterrados no mesmo dia.

“Eu não entendia porque eu estava perdendo pessoas que eu amava e ninguém estava fazendo nada”, conta. Poligamia, abusos sexuais, rituais que envolvem relação sexual sem proteção eram algumas das causas que fizeram Wagoma se tornar o vilarejo da morte.

Roseline se considera uma pessoa de sorte por ter crescido em uma casa de pais professores, que passaram muitos conhecimento aos filhos e os estimularam a nunca pararem de estudar. Com esse incentivo, Roseline se juntou às suas irmãs em Nairobi, capital do Quênia, onde ganhou uma bolsa de estudos para cursar design gráfico. O bom desempenho na universidade lhe rendeu um emprego no governo e, aos 26 anos, ela se casou. Até aqui, poderia ser o roteiro perfeito para um final feliz se não fosse por um detalhe: após o casamento, Roseline descobriu que não podia ter filhos, uma afronta para a cultura local.

Considerada amaldiçoada pela sociedade, dentro de casa não foi diferente. O casamento contou com episódios diários de violências físicas e emocionais. “Eu quase perdi a minha vida algumas vezes e, um dia, após quase morrer, eu decidi ir embora.”

Se não poder ter filhos já era um estigma, ser divorciada era ainda pior. Encerrar o matrimônio, no Quênia, é como um crime: seu custo foi Roseline perder tudo o que tinha. Sua casa e escritório foram incendiados, foi demitida do emprego no governo e desrespeitada pela sociedade. Perdas que a levaram a viver por seis meses nas ruas, sem nenhum amparo.

Foi quando uma amiga apareceu para ajudá-la. “Ela me colocou em um quarto de hotel e lá eu pude chorar por duas semanas. Depois, deu suporte legal e eu consegui abrir meu pequeno negócio, perto do parlamento, uma área bem central, onde eu consertava as roupas das pessoas”, lembra. Aos 32 anos, Roseline casou-se novamente, com a pessoa que diz “ser mais do que um marido, mas um grande amigo.”

A reviravolta de Roseline, que agora seria digna de final feliz, lhe reservara outro momento de dor: poucos meses depois do casamento, seu marido faleceu. Por trás do sofrimento, ela pode ter contato direto com os rituais da viuvez que são exigidos no Quênia: raspar o cabelo, dormir do lado de fora de casa, ser reiniciada sexualmente por outro homem (considerado um ritual de “limpeza”) e, então, ser “herdada” por outro membro da família do marido falecido que, muitas vezes, usam estas mulheres para trabalhos forçados dentro de casa.

Mais que isso, viúvas no Quênia são consideradas maldições. Carregam o estigma de que não cuidaram bem de seus maridos. Viúvas também perdem todos os seus direitos. Quando Roseline voltou do enterro, já encontrou a sua casa saqueada pelos próprios membros da família dele. Ficou sem nada.

Com o pouco de força que lhe restava, Roseline se recusou a seguir os rituais impostos pela sociedade queniana. Continuou com o seu negócio, mas perdeu clientes, contatos, amigos e familiares. No entanto, entre a clientela, estavam outras mulheres que também eram viúvas e que sofriam silenciosamente todos os abusos e violências por trás desses rituais. Roseline resolveu convidá-las para um bate-papo em sua casa, para compartilharem dores e sentimentos.

O primeiro encontro contou com oito viúvas, o segundo com 16 e de repente a casa de Roseline não suportava mais tantas mulheres que vinham compartilhar o seu desespero, antes silencioso. “Começou a ser maior do que eu. Um amigo meu, que é músico, pediu para participar de um encontro e, no dia seguinte, me chamou para uma reunião. Ele me perguntava quem estava me ajudando a organizar isso, quem me apoiava financeiramente, e quando eu disse que não havia nenhum suporte. Ele me deu 100 dólares e disse: você precisa criar uma ONG.”

Roseline não sabia por onde começar, mas criou a página no Facebook “Stop widow abuse in Kenya” (Pare com o abuso de viúvas no Quênia). Era a primeira vez que alguém decidia falar tão abertamente sobre os rituais em que as viúvas são submetidas no país. A ousadia chamou a atenção da imprensa. Em poucos dias, Roseline estava nas TVs, rádios e jornais em todo o país.

“Foi a primeira vez que sentimos algum suporte. Eu não falava dos meus problemas, eu mostrava soluções, caminhos para acabar com isso. Eu acho que o segredo para chamar tanta atenção foi sempre falar a minha verdade.”

Dias depois da repercussão, Roseline voltou a seu vilarejo e se deparou com a casa de sua mãe lotada de viúvas. Elas viram a conterrânea na mídia e queriam fazer o mesmo, queriam compartilhar sua dor na vila da morte. Inspirada, Roseline fechou o seu negócio, vendeu o seu estúdio e voltou para Wagoma para criar a Rona Foundation, o primeiro centro para viúvas e órfãos do Quênia.

Com o dinheiro de seu negócio, Roseline comprou uma terra onde constrói casas para as viúvas, financia estudos e fornece comida aos órfãos. Ela relata que já conseguiu colocar quase 200 órfãos na escola e alguns já estão na universidade. A iniciativa levou Roseline a voltar aos estudos e se formar em inovação social e administração. O curso a ajudou a melhorar as mídias sociais da Rona, a captação de recursos e o monitoramento de políticas para pressionar o governo do Quênia a criar leis mais rígidas que protejam as viúvas dos rituais enraizados no país.

Roseline lidera uma multidão de mulheres que acolhem outras mulheres enquanto tenta transformar Rona em um centro de referência em sustentabilidade. Ela sonha em criar uma vila autossustentável onde possam produzir toda a sua comida, fornecer dormitórios aos órfãos, ter centro de treinamentos para jovens, ter uma cozinha movida a biogás, criar uma padaria que ajude a gerar renda no local, oferecer biblioteca à toda a comunidade e um centro terapêutico que acolha as viúvas com traumas.

Enquanto esse sonho não se realiza, ela segue construindo casas de barro para as viúvas ao mesmo tempo em que bate na porta de políticos, dá entrevistas para a imprensa e faz a sua voz ecoar aos quatro cantos do Quênia e do mundo. Sua causa já pressionou o governo queniano a mudar a lei em relação aos rituais em que as viúvas são submetidas, mas culturalmente eles ainda estão enraizados.

“O meu sonho é ver viúvas ocupando o parlamento. Talvez quando elas estiverem lá, alguma coisa vai mudar e vamos criar um novo modelo de sociedade. Tudo o que eu quero é ver uma geração de mulheres que não precisem viver o que nós vivemos.”

Este conteúdo faz parte do projeto “Ela é quente”, idealizado e cedido ao Believe.Earth pela jornalista e educadora ambiental Evelyn Araripe. O projeto narra histórias inspiradoras de mulheres, de diferentes partes do mundo, que estão engajadas em ajudar a enfrentar as mudanças climáticas.